quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O sonho de Igor

Ele estava no meio da rua, com o sol a pino martelando as têmporas. O suor brilhava na testa. Atrás dele, uma conversa da qual ouvia só palavras que o vento quente trazia.

Fugiu... Polícia... Buscas...

Virou para trás e sua imagem estava em todos os lugares. Não era um espelho, mas cartazes com seu rosto estampado. As pessoas tinham nas mãos mais fotos dele. Estranhamente, ninguém parecia notá-lo. Correu para onde o instinto mandou, trombou com um muro alto, alto, alto. Nem tentou pular, tal era a moleza do joelho. Deixou-se desabar no chão.

Igor acordou num espasmo.


(haha, um recurso para não deixar o blog parado. Mas ainda nos próximos dias continuo)

sábado, 5 de dezembro de 2009

A viagem de Igor - II

No quinto ano, crises de nervos tornaram-se uma constante na vida da mãe de Igor. Roía as unhas, suava frio, tinha pesadelos. Por isso, o ex-promotor veio mais de uma vez para São Paulo. O pai alugou um sítio no interior para o filho ter mais segurança. Foi nessa época que a família discutiu pela primeira vez a rendição. Ninguém mais aguentava.

Com os pais envelhecendo a olhos vistos dia após dia, a preocupação com o futuro angustiou a casa dos Ferreira da Silva. Igor nunca sabia o que fazer e, como sempre, esperou o nervosismo passar. Mas ele tinha fé suficiente para ter paciência. Nem pensou em se entregar, apesar dos apelos. Quando era promotor, Igor conheceu muitas histórias de prisão que o deixavam arrepiado. Jamais imaginou que um dia estaria na posição do condenado. Não premeditei nada, então que direito eles têm de determinar o meu destino? Melhor era seguir escondido o quanto durasse a busca. Vinte anos não passam rápido.

Era só isso o que Igor pensava. Não lembrava mais do que aconteceu, nunca mais falou o nome dela, sublimou qualquer desejo sexual que tivesse. Um morto vivo era o que via refletido no espelho. Apesar de mais saudável, o cabelo caía sem parar, os olhos perderam o brilho, sorrisos eram raros, quase nunca sorria, na verdade. Igor tem a impressão de que sua vida foi enterrada junto com o caixão de Patrícia.

Fez alguns bicos durante o tempo que passou no sítio. Pintou paredes, carregou caixas e cortou grama. Leu livros também, algo que fez duas ou três vezes na vida. Claro, o primeiro que leu chamava-se Crime e castigo. Já tinha ouvido esse nome, porém nunca soube quem o escreveu até aquele momento. Igor identificou-se com Rodion. Ambos pensavam que poderiam atingir a salvação por meio do sofrimento. Mas, pensando bem, não pensava muito nisso. Parecia que Deus vivia numa cidade esquecida no Tocantins, e que se esquecia de Igor quando saía de lá. Ou o contrário. Igor era um poço de incertezas. Melhor deixar a literatura para quem tem mais o que pensar.

A mãe melhorou no fim do ano. Foi resultado de um esforço dos três, já que a polícia vinha rondando, querendo saber porque ela estava tão nervosa. A família descobriu assim que ainda monitoravam a casa e a vida de todos. Hora de voltar para o Tocantins.

Decidido isso, o ex-promotor emagreceu de um dia para outro. Ficou nervoso, trocou o dia pela noite e chorava muito. Mudaram de ideia. Igor foi para perto do mar, que não via desde antes de tudo. Para ele, tanto fazia a praia, diz que não se lembra de onde ficou, ou se ficou em vários lugares. Talvez os dois, talvez nenhum.

Ele perdia a noção da realidade.

Cansado, sem dinheiro e cada vez mais solitário, Igor viu o sexto ano começar com a mesma apatia dos outros. A vida dele dificilmente sairia daquele vagar sem fim, dessa ignorância que dominava seu corpo. Nada muda, nem há esperança. Dias iguais todos os dias.

O começo do ano foi marcado pela fome. Já não aguentava mais, aquele era seu estado de espírito permanete. Igor era promotor, trabalhou anos vestindo terno e gravata, no ar condicionado, dirigindo carrões. Isso acabou, como tudo. Não sentia saudade, mas à noite se pensava nisso, perdia o sono. Pensava às vezes que o que aconteceu deve ter amaldiçoado sua vida. Aí lembrava que aquela situação era fruto de uma escolha errada. Acordava de vez. Noites em claro não eram novidade. O que era novo era a dor de barriga e a falta de ar que sentia quando se revirava na cama com esses pensamentos.

Há seis anos não ia ao médico. Poucas vezes foi à farmácia. Ele não se importava. A mãe pedia para que se cuidasse, mesmo assim ele se esquecia.

Como vinha sendo sua vida, assim ela continuou sendo. Igor não tinha novidades, não tinha alegrias, não tinha frustrações. O mar não o comovia, mas o campo também era indiferente. Ele abacou por suplantar todos os sentimentos.

Foi trabalhar. Dessa vez virou jardineiro. Sempre esporádico, porque as pessoas o achavam estranho. Igor nem se esforçava para mudar esse quadro, não tinha ideia do que faria pelos próximos 14 anos. Estava decidido a não viver assim, queria achar uma saída. O problema era que ele não tinha saída. Sair do país talvez fosse bom, mas só de pensar em passar por uma fronteira o estômago dava um nó.

Para onde quer que olhasse, Igor se deparava com a realidade. Foi adoecendo aos poucos, como se só depois de tanto tempo é que o corpo reclamasse da falta de vida. Dores no corpo, roxos misteriosos, cãibras, espasmos e um zunido constante no ouvido. Sim, ele estava cansado.

E mais um ano em branco se passou. Uma dúvida consumia e queimava Igor: a vida seria isso até o fim? Até quando? Era incapaz de buscar a resposta dentro dele. Evitava-se.

(continua)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A viagem de Igor

O crime: dois tiros na cabeça de mulher grávida.
Um mistério: quem foi? Por quê?
E o maior de todos: o que ele fez da própria vida nesse tempo de sumiço?

Nem a família, nem o suposto assassino, o promotor Igor Ferreira da Silva, sabem. Ele se diz inocente. A família de Patrícia Aggio Longo não acredita ser ele o culpado. Tudo por conta de um exame de DNA. No processo, o teste deu que Igor não era o pai da criança. Crime passional.

A família contesta. Fez outro exame. O resultado é que Igor era o pai. Repetiram o teste, deu outra coisa. Por fim, ainda acreditam que o assassino não é o promotor, já que ele não teria motivos para atirar na esposa grávida.

No dia da sentença (16 anos e quatro meses de prisão), Igor não compareceu. No momento de se entregar tampouco.

Fugiu.

Oito anos depois, uma denúncia anônima avisa a polícia que o procurado estava a quatro quarteirões de distância. Uma voz masculina. Igor disse que se rendeu. Cansou de ser procurado, de ter a casa dos pais revistada. De se esconder, de viver doente, sozinho e isolado.

Disseram que ele esteve em Santa Catarina, em Buenos Aires, que tocou violão e cantou em bares. Tudo mentira, segundo Igor.

Então, o que ele andou fazendo nesses últimos anos? O que Igor fez quando saiu daquela igreja depois de saber que pegaria mais de 16 anos de prisão?

Seguiu para uma fazenda no interior do Tocantins. Fazenda do pai. Os peões não sabiam de nada porque ele chegou disfarçado. Na verdade, nunca sequer tinha pisado naquele lugar. Trabalhou, conheceu a região juntamente com a religião. Converteu-se, recebeu o perdão dos céus e encontrou descanso para a alma, mas não descobriu a coragem para se entregar. Viveu ali alguns meses, quase um ano.

Teve que seguir viagem porque a polícia estava perto. Voltou para a casa dos pais em São Paulo. Depois de um ano de mandados de busca, os investigadores diminuíram a assiduidade com que frequentavam a casa da família Ferreira da Silva. Talvez seja uma boa hora para passar um tempo por lá, pensou. E foi. Comeu a comida da mãe, viu o pai lendo jornal de manhã e todos saindo para trabalhar durante o dia. Igor ficava sozinho com seus pensamentos. Não podia atender telefone, não podia fazer muito barulho, quando vinham visitas, ele esperava. Num hotel barato perto dali, deitado de barriga para cima, olhando para o ventilador girando no teto com um barulho ritmado. Fi, fi, fi. A tv ficava ligada, mas ele prestava atenção no reflexo que a luz emitida produzia nas paredes.

Não pensava em nada mesmo. Já tinha esgotado os pensamentos. Fui eu mesmo quem fez isso? Mas eu disse que foi outro. Foi outro. Eu não. O filho era meu, então pra quê? E se não fosse? Não tinha como saber.

Quase enlouqueceu. Decidiu seguir viagem, uma viagem que devia durar 20 anos, o tempo de prescrição dos crimes que nem ele sabe mais se cometeu. Apenas um ano desde... Igor já repassou a história tantas e tantas vezes que se confunde. Dizer a verdade é difícil. É quase um esforço separar a realidade da ficção. Quando fica em dúvida, contenta-se em esperar passar, porque a recomendação é não ligar para casa, nem falar com ninguém. Telefones grampeados existem.

Amigos, então, nem pensar. Todos sumiram, todos. Ele se sente hostilizado, só guarda rancor. Novos amigos Igor não os tem. Só mesmo conhecidos de passagem, para os quais ele mente nome, idade e todo o resto. Ninguém mais conhece o promotor. Ele não quer ser reconhecido. Mas a identidade foge, fugiu. Quem sou eu?

Mais um ano se passou. Igor não usa relógio e se confunde quanto aos dias da semana. Domingo ou quinta-feira têm a mesma cara. Ele olha para o céu, acha que vai chover. Uma hora depois, faz sol. Até as nuvens se enganam. Ele enganou todo mundo. Por quanto tempo, mãe? Falta muito?

Do terceiro ano ele pouco se lembra. Diz que ficou muito doente, com alguns distúrbios psiquiátricos. Tomava remédios e dormia demais. Passou.

No quarto ano voltou para trabalhar na fazenda. Ali pelo menos ele podia andar com liberdade, tomar sol, sair de casa. Mourejou no sol. Refez as cercas, alimentou os porcos, matou galinhas, dirigiu tratores.

A cidade é pequena, muito pequena. Dessas que só tem uma escolinha e os alunos mais velhos precisam pegar ônibus para o município vizinho a partir dos 11 anos. Parece que ali ninguém sabia da existência dele. Esquecido pelo mundo, todo dia Igor se lembrava. Se arrependimento matasse, ela estaria viva.

Igor descobriu que nem sempre fazer e se arrepender é melhor que ficar na dúvida.

Depois da depressão do terceiro ano, o promotor engordou, ganhou vitalidade e conheceu uma mulher. Loira, branquinha, olhos claros. Nem notou a semelhança. Ele quase não lembrava do rosto dela. Transaram duas vezes, ele não gostou, achou estranho. Ela, então, nem se fala. O cara era quieto, parecia tímido. Chegando perto, concluiu que era isso mesmo.

Resolveu dar uma chance, oras. E não foi legal. Os dois sumiram. (Imaginem só o susto que a loira tomou quando viu que o cara era só foragido da polícia por ter matado uma mulher parecida com ela...)

Igor voltou-se mais para a religião. Tinha se afastado quando esteve em São Paulo e quando entrou em depressão. Na igreja não perguntaram seu nome, nem o que fez, nem porque chorava, nem nada. Gostou. Aceitou Jesus de novo. De novo aquela experiência mística. Mais uma vez quis contar a todos por que estava ali. Mas seu medo humano rebateu a vontade divina.

Dividia seu tempo entre igreja e fazenda. Para cobrir a distância entre uma coisa e outra ia de bicicleta, boné e óculos escuros. Mais de uma vez cruzou com a polícia. Morreu de medo, não achou nada engraçado.

Basicamente, era um medroso.

(continua)