quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A viagem de Igor

O crime: dois tiros na cabeça de mulher grávida.
Um mistério: quem foi? Por quê?
E o maior de todos: o que ele fez da própria vida nesse tempo de sumiço?

Nem a família, nem o suposto assassino, o promotor Igor Ferreira da Silva, sabem. Ele se diz inocente. A família de Patrícia Aggio Longo não acredita ser ele o culpado. Tudo por conta de um exame de DNA. No processo, o teste deu que Igor não era o pai da criança. Crime passional.

A família contesta. Fez outro exame. O resultado é que Igor era o pai. Repetiram o teste, deu outra coisa. Por fim, ainda acreditam que o assassino não é o promotor, já que ele não teria motivos para atirar na esposa grávida.

No dia da sentença (16 anos e quatro meses de prisão), Igor não compareceu. No momento de se entregar tampouco.

Fugiu.

Oito anos depois, uma denúncia anônima avisa a polícia que o procurado estava a quatro quarteirões de distância. Uma voz masculina. Igor disse que se rendeu. Cansou de ser procurado, de ter a casa dos pais revistada. De se esconder, de viver doente, sozinho e isolado.

Disseram que ele esteve em Santa Catarina, em Buenos Aires, que tocou violão e cantou em bares. Tudo mentira, segundo Igor.

Então, o que ele andou fazendo nesses últimos anos? O que Igor fez quando saiu daquela igreja depois de saber que pegaria mais de 16 anos de prisão?

Seguiu para uma fazenda no interior do Tocantins. Fazenda do pai. Os peões não sabiam de nada porque ele chegou disfarçado. Na verdade, nunca sequer tinha pisado naquele lugar. Trabalhou, conheceu a região juntamente com a religião. Converteu-se, recebeu o perdão dos céus e encontrou descanso para a alma, mas não descobriu a coragem para se entregar. Viveu ali alguns meses, quase um ano.

Teve que seguir viagem porque a polícia estava perto. Voltou para a casa dos pais em São Paulo. Depois de um ano de mandados de busca, os investigadores diminuíram a assiduidade com que frequentavam a casa da família Ferreira da Silva. Talvez seja uma boa hora para passar um tempo por lá, pensou. E foi. Comeu a comida da mãe, viu o pai lendo jornal de manhã e todos saindo para trabalhar durante o dia. Igor ficava sozinho com seus pensamentos. Não podia atender telefone, não podia fazer muito barulho, quando vinham visitas, ele esperava. Num hotel barato perto dali, deitado de barriga para cima, olhando para o ventilador girando no teto com um barulho ritmado. Fi, fi, fi. A tv ficava ligada, mas ele prestava atenção no reflexo que a luz emitida produzia nas paredes.

Não pensava em nada mesmo. Já tinha esgotado os pensamentos. Fui eu mesmo quem fez isso? Mas eu disse que foi outro. Foi outro. Eu não. O filho era meu, então pra quê? E se não fosse? Não tinha como saber.

Quase enlouqueceu. Decidiu seguir viagem, uma viagem que devia durar 20 anos, o tempo de prescrição dos crimes que nem ele sabe mais se cometeu. Apenas um ano desde... Igor já repassou a história tantas e tantas vezes que se confunde. Dizer a verdade é difícil. É quase um esforço separar a realidade da ficção. Quando fica em dúvida, contenta-se em esperar passar, porque a recomendação é não ligar para casa, nem falar com ninguém. Telefones grampeados existem.

Amigos, então, nem pensar. Todos sumiram, todos. Ele se sente hostilizado, só guarda rancor. Novos amigos Igor não os tem. Só mesmo conhecidos de passagem, para os quais ele mente nome, idade e todo o resto. Ninguém mais conhece o promotor. Ele não quer ser reconhecido. Mas a identidade foge, fugiu. Quem sou eu?

Mais um ano se passou. Igor não usa relógio e se confunde quanto aos dias da semana. Domingo ou quinta-feira têm a mesma cara. Ele olha para o céu, acha que vai chover. Uma hora depois, faz sol. Até as nuvens se enganam. Ele enganou todo mundo. Por quanto tempo, mãe? Falta muito?

Do terceiro ano ele pouco se lembra. Diz que ficou muito doente, com alguns distúrbios psiquiátricos. Tomava remédios e dormia demais. Passou.

No quarto ano voltou para trabalhar na fazenda. Ali pelo menos ele podia andar com liberdade, tomar sol, sair de casa. Mourejou no sol. Refez as cercas, alimentou os porcos, matou galinhas, dirigiu tratores.

A cidade é pequena, muito pequena. Dessas que só tem uma escolinha e os alunos mais velhos precisam pegar ônibus para o município vizinho a partir dos 11 anos. Parece que ali ninguém sabia da existência dele. Esquecido pelo mundo, todo dia Igor se lembrava. Se arrependimento matasse, ela estaria viva.

Igor descobriu que nem sempre fazer e se arrepender é melhor que ficar na dúvida.

Depois da depressão do terceiro ano, o promotor engordou, ganhou vitalidade e conheceu uma mulher. Loira, branquinha, olhos claros. Nem notou a semelhança. Ele quase não lembrava do rosto dela. Transaram duas vezes, ele não gostou, achou estranho. Ela, então, nem se fala. O cara era quieto, parecia tímido. Chegando perto, concluiu que era isso mesmo.

Resolveu dar uma chance, oras. E não foi legal. Os dois sumiram. (Imaginem só o susto que a loira tomou quando viu que o cara era só foragido da polícia por ter matado uma mulher parecida com ela...)

Igor voltou-se mais para a religião. Tinha se afastado quando esteve em São Paulo e quando entrou em depressão. Na igreja não perguntaram seu nome, nem o que fez, nem porque chorava, nem nada. Gostou. Aceitou Jesus de novo. De novo aquela experiência mística. Mais uma vez quis contar a todos por que estava ali. Mas seu medo humano rebateu a vontade divina.

Dividia seu tempo entre igreja e fazenda. Para cobrir a distância entre uma coisa e outra ia de bicicleta, boné e óculos escuros. Mais de uma vez cruzou com a polícia. Morreu de medo, não achou nada engraçado.

Basicamente, era um medroso.

(continua)

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