sábado, 5 de dezembro de 2009

A viagem de Igor - II

No quinto ano, crises de nervos tornaram-se uma constante na vida da mãe de Igor. Roía as unhas, suava frio, tinha pesadelos. Por isso, o ex-promotor veio mais de uma vez para São Paulo. O pai alugou um sítio no interior para o filho ter mais segurança. Foi nessa época que a família discutiu pela primeira vez a rendição. Ninguém mais aguentava.

Com os pais envelhecendo a olhos vistos dia após dia, a preocupação com o futuro angustiou a casa dos Ferreira da Silva. Igor nunca sabia o que fazer e, como sempre, esperou o nervosismo passar. Mas ele tinha fé suficiente para ter paciência. Nem pensou em se entregar, apesar dos apelos. Quando era promotor, Igor conheceu muitas histórias de prisão que o deixavam arrepiado. Jamais imaginou que um dia estaria na posição do condenado. Não premeditei nada, então que direito eles têm de determinar o meu destino? Melhor era seguir escondido o quanto durasse a busca. Vinte anos não passam rápido.

Era só isso o que Igor pensava. Não lembrava mais do que aconteceu, nunca mais falou o nome dela, sublimou qualquer desejo sexual que tivesse. Um morto vivo era o que via refletido no espelho. Apesar de mais saudável, o cabelo caía sem parar, os olhos perderam o brilho, sorrisos eram raros, quase nunca sorria, na verdade. Igor tem a impressão de que sua vida foi enterrada junto com o caixão de Patrícia.

Fez alguns bicos durante o tempo que passou no sítio. Pintou paredes, carregou caixas e cortou grama. Leu livros também, algo que fez duas ou três vezes na vida. Claro, o primeiro que leu chamava-se Crime e castigo. Já tinha ouvido esse nome, porém nunca soube quem o escreveu até aquele momento. Igor identificou-se com Rodion. Ambos pensavam que poderiam atingir a salvação por meio do sofrimento. Mas, pensando bem, não pensava muito nisso. Parecia que Deus vivia numa cidade esquecida no Tocantins, e que se esquecia de Igor quando saía de lá. Ou o contrário. Igor era um poço de incertezas. Melhor deixar a literatura para quem tem mais o que pensar.

A mãe melhorou no fim do ano. Foi resultado de um esforço dos três, já que a polícia vinha rondando, querendo saber porque ela estava tão nervosa. A família descobriu assim que ainda monitoravam a casa e a vida de todos. Hora de voltar para o Tocantins.

Decidido isso, o ex-promotor emagreceu de um dia para outro. Ficou nervoso, trocou o dia pela noite e chorava muito. Mudaram de ideia. Igor foi para perto do mar, que não via desde antes de tudo. Para ele, tanto fazia a praia, diz que não se lembra de onde ficou, ou se ficou em vários lugares. Talvez os dois, talvez nenhum.

Ele perdia a noção da realidade.

Cansado, sem dinheiro e cada vez mais solitário, Igor viu o sexto ano começar com a mesma apatia dos outros. A vida dele dificilmente sairia daquele vagar sem fim, dessa ignorância que dominava seu corpo. Nada muda, nem há esperança. Dias iguais todos os dias.

O começo do ano foi marcado pela fome. Já não aguentava mais, aquele era seu estado de espírito permanete. Igor era promotor, trabalhou anos vestindo terno e gravata, no ar condicionado, dirigindo carrões. Isso acabou, como tudo. Não sentia saudade, mas à noite se pensava nisso, perdia o sono. Pensava às vezes que o que aconteceu deve ter amaldiçoado sua vida. Aí lembrava que aquela situação era fruto de uma escolha errada. Acordava de vez. Noites em claro não eram novidade. O que era novo era a dor de barriga e a falta de ar que sentia quando se revirava na cama com esses pensamentos.

Há seis anos não ia ao médico. Poucas vezes foi à farmácia. Ele não se importava. A mãe pedia para que se cuidasse, mesmo assim ele se esquecia.

Como vinha sendo sua vida, assim ela continuou sendo. Igor não tinha novidades, não tinha alegrias, não tinha frustrações. O mar não o comovia, mas o campo também era indiferente. Ele abacou por suplantar todos os sentimentos.

Foi trabalhar. Dessa vez virou jardineiro. Sempre esporádico, porque as pessoas o achavam estranho. Igor nem se esforçava para mudar esse quadro, não tinha ideia do que faria pelos próximos 14 anos. Estava decidido a não viver assim, queria achar uma saída. O problema era que ele não tinha saída. Sair do país talvez fosse bom, mas só de pensar em passar por uma fronteira o estômago dava um nó.

Para onde quer que olhasse, Igor se deparava com a realidade. Foi adoecendo aos poucos, como se só depois de tanto tempo é que o corpo reclamasse da falta de vida. Dores no corpo, roxos misteriosos, cãibras, espasmos e um zunido constante no ouvido. Sim, ele estava cansado.

E mais um ano em branco se passou. Uma dúvida consumia e queimava Igor: a vida seria isso até o fim? Até quando? Era incapaz de buscar a resposta dentro dele. Evitava-se.

(continua)

2 comentários:

  1. Ler você é reconhcer você, é muito bom. Você tem o dom.

    E eu quero mais.

    Besos,G.N.

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  2. continua! continua!

    to adorando... amigue de blogue.

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